sábado, 16 de janeiro de 2010

O Consumo da solidariedade

A tragédia causada pelo terremoto no Haiti reacende o debate sobre a disposição de ajudar o outro. Trata-se, no mínimo, de uma perspectiva diferente para o verão, período em que as pessoas estão mais centradas nelas mesmas e em seus prazeres pessoais. Talvez a repercussão dessa tragédia seja maior no Brasil do que em outros países, tanto pelo fato de haver um contingente do exército brasileiro como força de estabilização em missão da ONU naquele país, quanto pela morte da médica Zilda Arns, que lá estava em missão humanitária e que possuía longa e conhecida trajetória de trabalho comunitário.

Nesses casos, por uma questão de interesses geopolíticos, Estados nacionais assumem papéis de solidariedade: destinam fundos e enviam alimentos e remédios, entre outros recursos. Indivíduos, em menor escala, doam recursos ou se oferecem para trabalhos voluntários. Em ambos os casos ocorre o consumo da solidariedade. No primeiro, um consumo pragmático, no segundo um consumo simbólico.

Costumes, hábitos e, especialmente, valores, individuais, comunitários ou mesmo religiosos, orientam o caráter de ações individuais e sociais de solidariedade. Assim, a solidariedade, mesmo que revestida de nobreza, não é consumida de modo igual e com o mesmo sentido. A propósito, entre o segundo semestre de 2008 e o primeiro de 2009, ocorreram chuvas de extrema intensidade nas regiões nordeste e sul do nosso país, deixando milhares e milhares de pessoas desabrigadas. Para cada R$ 1,00 recebido em solidariedade pela região nordeste, a região sul recebeu R$ 8,50, quando havia uma proporção de 4 desabrigados na primeira para cada 1 desabrigado na segunda.

Que o legado de Zilda Arns não seja tão rapidamente esquecido como parece já ter sido esquecido aquele deixado pelo Betinho (Herbert José de Sousa), que criou no início dos anos 1990 o movimento Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. Pois, afinal, como já dizia Caetano Veloso, em canção do disco comemorativo dos 25 anos do tropicalismo, lançado em 1993, “o Haiti é aqui”.

Referências Conexas

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

NEPSTAD, Sharon E. Convictions of the soul: religion, culture, and agency in the Central America solidarity movement. Oxford: Oxford University Press, 2004.

WEBER, Max. Ensaios sobre a teoria das ciências sociais. São Paulo: Centauro, 2003.

WYMER JR., Walter W.; SAMU, Sridhar. Volunteer service as symbolic consumption: gender and occupational differences in volunteering. Journal of Marketing Management, v. 18, n. 9, p. 971-989, 2002.

3 comentários:

  1. Excelente! ! ! !

    Precisamos da miséria do outro para mostrarmos o quanto somos bons.

    Little.

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  2. Perfeito texto! A essência do mkt social é essa mesma: quanto maior a repercussão das notícias, mais recursos são destinados como ajuda humanitária.

    Por isso, uma tragédia que envolve pessoas esmagadas e mutiladas, além de corpos em decomposição espalhados pela cidade, oferece muito mais argumentos jornalísticos, e consequentemente publicitários, para motivar países, empresas e artistas a doarem seus generosos milhões, do que as milhares de pessoas que vivem em escolas públicas e ginásios de esporte no Brasil após perderem suas casas nas enchentes... e sem saber para onde vão depois que a água baixar.

    Estamos de fato cuidando de nossos problemas internos, ou estamos destinando profissionais e recursos monetários, diante das câmeras, para as tragédias internacionais?

    Prevenir as novas enchentes com mecanismos de retenção da água para privar a população brasileira de novos infortúnios é mais ou menos importante do que promover-se internacionalmente em busca da tão cobiçada vaga na cadeira de conselho de segurança da ONU (que já provou que não serve pra nada diante da inoperância frente ao ataque norte-americano ao Iraque)?!

    A falta de foco, missão e valores é um problema gravíssimo em nosso governo... o governo do povo. Somos um país em desenvolvimento, porém miserável e sem os recursos sanitários mínimos necessários em muitas partes, não poucas. A diferença do Brasil e do Haiti é que aqui temos capital para resolver os problemas mas não resolvemos, e ao contrários disso, fazemos marketing internacional ajudando os outros miseráveis.

    Grande abraço, meu amigo!
    Adriano Berger

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  3. Por um lado concordo, mas por outro é dificil ficar impassível diante de tanta miséria e sofrimento humano! Eu mesma juntei varios remédios, soros, antibióticos, seringas, etc, alem de colchoes e cobertores para enviar pra la. Mas sei que também em cada país os problemas internos sao gravíssimos. Acho que a solidariedade dever ser nao só com as grandes tragedias, mas tambem com o nosso proprio pais. No meu caso, que moro em Honduras, faco campanhas de doaçoes todos os anos para associaçoes de criancas carentes, pessoas com Aids, crianças con deficiencia, doo um pouco de dinheiro todos os meses para a educaçao de crianças órfanas. E nao sou rica nem nada, mas acho que cada pessoa tem que fazer um pouco para que todos possamos viver em um mundo melhor!

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