domingo, 30 de setembro de 2018

Eleições, "marqueteiros" e marketing



Desde que se iniciou o processo de redemocratização do país, a cada ano eleitoral ocorre sempre a mesma coisa: políticos procuram se cercar de diferentes profissionais que desenvolvem atividades que vão da definição de estratégias de campanha e realização de pesquisas de intenção de voto, até o cuidado com a aparência pessoal e o modo por meio do qual falam com os eleitores e expressam suas propostas de campanha. Isso é mais evidente para aqueles políticos que disputam cargos majoritários, como é o caso dos cargos de prefeito, governador e presidente.

Salvo raras exceções, eleitores, candidatos e, para piorar, a própria mídia de difusão, têm por hábito não proceder a uma distinção clara sobre o tipo de papel que é desempenhado por cada um desses profissionais ou assessores. Mais que isso, costumam denominá-los de “marqueteiros”. Trata-se de algo lamentável e que tem sido danoso tanto para profissionais que exercem a atividade de propaganda e publicidade, quanto àqueles que exercem a atividade de marketing em diferentes organizações, com ou sem fins lucrativos.

Em termos específicos, a atividade de marketing termina sendo reduzida à comunicação – diga-se de passagem, comunicação persuasiva de má fé, com fins espúrios, para mentir e enganar eleitores. Ao se referirem aos “marqueteiros”, até se referem a marketing com o uso do artigo masculino definido: o marketing. Ocorre que marketing não é sujeito, não tem capacidade de agência. Esse é um viés infelizmente alimentado pela mídia de difusão ao realizar a cobertura das eleições. 

Marketing também é comunicação, mas é muito mais que isso: envolve desde a pesquisa e estudo de produtos e serviços, até o desenvolvimento, formatação e produção dos mesmos, incluindo distribuição, logística e precificação, por exemplo. A rigor, marketing tanto é uma disciplina acadêmica quanto uma prática administrativa em organizações, que existe desde o início do século passado.

Profissionais de marketing, sejam eles praticantes ou acadêmicos, não são mentirosos ou ludibriam pessoas, por princípio ou definição. Mentir ou ludibriar independe do exercício de uma dada profissão e pode acontecer em qualquer atividade. Aliás, nunca é demais lembrar que as pessoas, pelo menos em tese, possuem capacidade de discernimento para fazer suas próprias escolhas. Se isso não acontece como desejado para o pleno exercício da cidadania, não deveria ser algo imputado aos profissionais de marketing. 

Talvez a tentativa de atribuir responsabilidade ao profissional de marketing por mazelas que existem na política brasileira seja mais uma manifestação daquilo que eu defino como cultura da transferência da responsabilidade, algo típico em nossa sociedade: a culpa nunca é minha ou sua; é sempre de outra pessoa.

* Publicado originalmente em Revista ACIM - Associação Comercial e Industrial de Maringá, v. 53, p. 58, 05 de julho de 2016.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

The Handmaid's Tale, ou sobre controle social



Em um mundo distópico e misógino, mulheres são subjugadas, estupradas e reduzidas à condição de procriadoras. A fertilidade feminina é o passaporte para o inferno. Tudo em nome de um estado totalitário e "under His eye". Arrastada em um redemoinho de acontecimentos que invadem e interrompem seu cotidiano, a personagem June Osborne (Elisabeth Moss), casada com Luke Bankole (O-T Fagbenle) e mãe de Hannah Bankole (Jordana Blake), na minissérie The Handmaid's Tale (O Conto da Aia), vive uma saga em que tenta afirmar um ideário de resistência, liberdade, autonomia e capacidade de agência do indivíduo perante um sistema restritivo e coercitivo. As práticas sociais exibidas ao longo das cenas são circunscritas a uma situação disciplinar em que a punição é uma ação onipresente. Curiosamente, não há câmeras multi-situadas a observarem os personagens. O sistema de monitoramento é eletrônico - um dispositivo preso a orelha. Parece George Orwell, mas lembra mesmo é Michel Foucault. O controle e o exercício do poder está nas relações entre as pessoas - algo também presente no mundo em que vivemos. Exibida no Brasil pelo canal Paramount em emissoras de TV a cabo, a minissérie está em sua segunda temporada. Se você gosta de minisséries, e ainda mais se tem interesse na arquitetura das relações sociais, vale a pena conferir.

Referências Conexas

Foucault, M. (1988). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal.

Foucault, M. (2014). Vigiar e punir - nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes.

Orwell, G. (2009). 1984. São Paulo: Companhia das Letras.

Vieira, F. G. D., & Gasparetto, O. (1999). Relações perigosas: nota de uma reflexão crítica sobre a implantação de programas de gestão da qualidade à luz da "Microfísica do Poder" de Michel Foucault. Caderno de Administração, 7(2), 129-134.

domingo, 18 de março de 2018

Quem sabe ensina, quem não sabe aprende




Algum tempo atrás, no final dos anos 1980, de vez em quando eu escutava alguém comentar o seguinte: "quem sabe faz; quem não sabe, ensina". Em geral, as pessoas de quem eu escutava esse tipo de comentário eram pessoas que transitavam no mundo acadêmico, porém eram ligadas ao mercado por meio de alguma atividade empresarial como gestor ou consultor. Eram os chamados acadêmicos-praticantes. Era uma época em que não havia o mesmo volume de oferta de cursos stricto sensu que existe hoje em dia, e que muitos professores tinham não mais que uma especialização, a chamada pós-graduação lato sensu. Tais professores, via de regra, ministravam aulas em período noturno. Em certa medida, é como se procurassem demarcar um território que compensasse a falta de uma pós-graduação stricto sensu. Naquela época, ter o título de mestre era algo raro, e ter o título de doutor era raríssimo. Alguns daqueles professores acreditavam que a experiência que possuíam nas atividades empresariais ou de consultoria fora da universidade era suficiente para lhes legitimarem no trabalho como professores. Costumavam dizer, ainda, que eles, sim, ensinavam a prática, e que outros ensinavam teoria. Com o passar do tempo e por meio da interação com outros colegas professores, e também por meio da interação com alunos que tínhamos em comum, pude perceber que, a rigor, vários desses professores mais falavam sobre os seus próprios trabalhos e atividades empresariais ou de consultoria, do que, de fato, ministravam o conteúdo programático das disciplinas pelas quais eram responsáveis. Desse modo, percebi que o professor A ou B não ministrava aula de X ou Y, mas sim falava o tempo todo da empresa K ou Z, onde exercia alguma atividade de gestor ou consultor. O tempo passou e hoje vejo que a prática de muitos desses profissionais, especialmente os consultores, mudou bastante no que tange a ideia de ensino. É curioso perceber empresas de consultoria e de pesquisa de mercado tentarem se posicionar no mercado como instituições de ensino, capacitação e treinamento. Várias delas oferecem cursos de metodologia de pesquisa, treinamento em pesquisa, e até mesmo se aventuram na oferta de cursos de MBA! Isso mesmo, você não leu errado: cursos de MBA. Como se não bastasse também tentam criar novos conceitos ou tipos de serviço como mentoring e coaching corporativo ou one shot consultancy. Como se diz popularmente, "o mundo não tem esquinas", ou ainda, "nada melhor do que um dia atrás do outro".