O país tropical que gosta da menina que é linda, cheia de
graça e de doce balanço, não é o país que gosta da menina que usa roupa que
mostra o corpo. Pode parecer uma contradição, mas essa constatação está
presente na pesquisa
Tolerância Social à
Violência Contra as Mulheres, realizada pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), cujos
resultados (em arquivo pdf) foram divulgados recentemente, no
dia 27 de março, e geraram grande repercussão na mídia e em redes sociais
virtuais.
A pesquisa, efetuada entre maio e junho de 2013 junto a uma
amostra de 3.810 pessoas dos gêneros masculino e feminino, é parte integrante
do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), que é definido pelo IPEA
como “uma pesquisa domiciliar e presencial
que visa captar a percepção das famílias acerca das políticas públicas
implementadas pelo Estado, independentemente destas serem usuárias ou não dos
seus programas e ações”. A se compreender por essa definição, a pesquisa
deve ter sido conduzida em função de políticas públicas do Governo Federal
brasileiro voltadas para a proteção da mulher ou para a promoção de igualdade
entre gêneros. Por conseguinte, percebe-se que o IPEA não se restringe à produção
de estudos exclusivamente voltados à economia aplicada.
Na divulgação de 27 de março o relatório de pesquisa do IPEA
informava que nada mais nada menos que “(...)
65% das pessoas que responderam à pesquisa concordam com a afirmação, nem um
pouco sutil, de que ‘mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser
atacadas’”. Tal constatação é de deixar qualquer pessoa estarrecida. Trata-se
de algo inconcebível. Em um país como o Brasil ela é ainda mais assustadora,
pois do ponto de vista de cultura material, o vestuário usado pelo brasileiro é
preponderantemente moldado a partir das condições climáticas do país. E o
Brasil, nunca é demais lembrar, é um país de grandes dimensões geográficas e de
clima tropical, em que o calor faz parte do cotidiano, seja em regiões
litorâneas, com seus 7.367 quilômetros de praia, seja no interior, constituído
por caatinga, cerrado ou pantanal. Por outro lado, o cristianismo é a religião
da maior parte dos brasileiros e ela não estabelece restrições ou impõe normas sobre vestuário àqueles
que dela fazem parte. Portanto, parece minimamente razoável imaginar que o
brasileiro está habituado a ver “mulheres
que usam roupas que mostram o corpo” e que isso não representa a menor justificativa para que se promova um ataque às mulheres.
Diante da repercussão decorrente da divulgação da pesquisa, o
IPEA parece ter revisitado os dados da pesquisa e publicou uma
errata no dia 04
de abril, admitindo que houve um erro, que consistiu na troca dos dados oriundos
de duas das 27 questões –ou frases – relacionadas à tolerância à violência
contra a mulher investigada na pesquisa. A troca ocorreu entre as questões relacionadas
ao gráfico 23, apresentado à página 22, e ao gráfico 24, apresentado à pagina
23. O primeiro corresponde à questão ou frase
“mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”
e o segundo diz respeito à questão ou frase “
mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.
Ambas as questões/frases foram formuladas com base em uma
escala Likert com cinco postos. De acordo com a metodologia informada no
relatório, “(...) as frases foram lidas para
os entrevistados, que em seguida deveriam dizer se concordavam total ou
parcialmente, ou se nem concordavam nem discordavam (neutralidade)”. No
relatório inicial, o resultado de concordância para a frase/questão 23 totalizava
26,0%, enquanto o resultado de concordância para a frase/questão 24 totalizava 65,1%.
Segundo a errata publicada pelo IPEA tais resultados devem ser invertidos.
O IPEA tem uma longa tradição de pesquisas sérias e bem
elaboradas. É no mínimo curioso como a inversão desses dados ocorreu na
elaboração do relatório inicialmente divulgado. A errata trata a inversão
meramente como uma troca de dados. Quem lê o relatório, porém, perceberá que
não há apenas dados ou gráficos às páginas 22 e 23 do relatório. Há descrição e
análise! Como foi possível descrever e analisar os dados sem desconfiar que
algo estava fora do lugar, sobretudo tendo em vista a natureza da
questão/frase? E o trabalho de supervisão da elaboração do relatório da
pesquisa? Pesquisas desse porte não costumam ter seus resultados analisados e
escritos por um único profissional. Normalmente é um trabalho em equipe.
Ninguém percebeu que se estava afirmando que praticamente dois terços dos brasileiros
concordavam com tamanha violência, uma espécie de barbárie?
65 ou 26? 26 ou 65? Invertendo ou não o algarismo seis de
posição e modificando os percentuais, a violência existe. 65 são 2,5 vezes 26,
mas não é a redução do percentual que vai mudar algo. Potencialmente e
simbolicamente, a intolerância está tanto em um número quanto em outro. Trata-se
de um fenômeno a ser objeto de observação e discussão não só por formuladores
de políticas públicas, como também por profissionais do mundo da moda e da
indústria do vestuário, em geral.