domingo, 6 de abril de 2014

Mulheres, roupas e corpo, ou sobre um instituto (e um país) de ponta-cabeça



O país tropical que gosta da menina que é linda, cheia de graça e de doce balanço, não é o país que gosta da menina que usa roupa que mostra o corpo. Pode parecer uma contradição, mas essa constatação está presente na pesquisa Tolerância Social à Violência Contra as Mulheres, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cujos resultados (em arquivo pdf) foram divulgados recentemente, no dia 27 de março, e geraram grande repercussão na mídia e em redes sociais virtuais.

A pesquisa, efetuada entre maio e junho de 2013 junto a uma amostra de 3.810 pessoas dos gêneros masculino e feminino, é parte integrante do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), que é definido pelo IPEA como “uma pesquisa domiciliar e presencial que visa captar a percepção das famílias acerca das políticas públicas implementadas pelo Estado, independentemente destas serem usuárias ou não dos seus programas e ações”. A se compreender por essa definição, a pesquisa deve ter sido conduzida em função de políticas públicas do Governo Federal brasileiro voltadas para a proteção da mulher ou para a promoção de igualdade entre gêneros. Por conseguinte, percebe-se que o IPEA não se restringe à produção de estudos exclusivamente voltados à economia aplicada.

Na divulgação de 27 de março o relatório de pesquisa do IPEA informava que nada mais nada menos que “(...) 65% das pessoas que responderam à pesquisa concordam com a afirmação, nem um pouco sutil, de que ‘mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas’”. Tal constatação é de deixar qualquer pessoa estarrecida. Trata-se de algo inconcebível. Em um país como o Brasil ela é ainda mais assustadora, pois do ponto de vista de cultura material, o vestuário usado pelo brasileiro é preponderantemente moldado a partir das condições climáticas do país. E o Brasil, nunca é demais lembrar, é um país de grandes dimensões geográficas e de clima tropical, em que o calor faz parte do cotidiano, seja em regiões litorâneas, com seus 7.367 quilômetros de praia, seja no interior, constituído por caatinga, cerrado ou pantanal. Por outro lado, o cristianismo é a religião da maior parte dos brasileiros e ela não estabelece restrições ou impõe normas sobre vestuário àqueles que dela fazem parte. Portanto, parece minimamente razoável imaginar que o brasileiro está habituado a ver “mulheres que usam roupas que mostram o corpo” e que isso não representa a menor justificativa para que se promova um ataque às mulheres.

Diante da repercussão decorrente da divulgação da pesquisa, o IPEA parece ter revisitado os dados da pesquisa e publicou uma errata no dia 04 de abril, admitindo que houve um erro, que consistiu na troca dos dados oriundos de duas das 27 questões –ou frases – relacionadas à tolerância à violência contra a mulher investigada na pesquisa. A troca ocorreu entre as questões relacionadas ao gráfico 23, apresentado à página 22, e ao gráfico 24, apresentado à pagina 23. O primeiro corresponde à questão ou frase “mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar” e o segundo diz respeito à questão ou frase “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”.

Ambas as questões/frases foram formuladas com base em uma escala Likert com cinco postos. De acordo com a metodologia informada no relatório, “(...) as frases foram lidas para os entrevistados, que em seguida deveriam dizer se concordavam total ou parcialmente, ou se nem concordavam nem discordavam (neutralidade)”. No relatório inicial, o resultado de concordância para a frase/questão 23 totalizava 26,0%, enquanto o resultado de concordância para a frase/questão 24 totalizava 65,1%. Segundo a errata publicada pelo IPEA tais resultados devem ser invertidos.

O IPEA tem uma longa tradição de pesquisas sérias e bem elaboradas. É no mínimo curioso como a inversão desses dados ocorreu na elaboração do relatório inicialmente divulgado. A errata trata a inversão meramente como uma troca de dados. Quem lê o relatório, porém, perceberá que não há apenas dados ou gráficos às páginas 22 e 23 do relatório. Há descrição e análise! Como foi possível descrever e analisar os dados sem desconfiar que algo estava fora do lugar, sobretudo tendo em vista a natureza da questão/frase? E o trabalho de supervisão da elaboração do relatório da pesquisa? Pesquisas desse porte não costumam ter seus resultados analisados e escritos por um único profissional. Normalmente é um trabalho em equipe. Ninguém percebeu que se estava afirmando que praticamente dois terços dos brasileiros concordavam com tamanha violência, uma espécie de barbárie?

65 ou 26? 26 ou 65? Invertendo ou não o algarismo seis de posição e modificando os percentuais, a violência existe. 65 são 2,5 vezes 26, mas não é a redução do percentual que vai mudar algo. Potencialmente e simbolicamente, a intolerância está tanto em um número quanto em outro. Trata-se de um fenômeno a ser objeto de observação e discussão não só por formuladores de políticas públicas, como também por profissionais do mundo da moda e da indústria do vestuário, em geral.

3 comentários:

  1. Mais uma análise pontualíssima, meu caro amigo Giovanni! Não sei se é mais chocante o resultado da pesquisa ou a "tentativa" de esconder uma opinião estarrecedora com a posterior publicação da ERRATA. Contudo, na minha modesta opinião, parece-me que ao dizer que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas", o entrevistado não quis dizer exatamente isso, mas sim uma justificativa para o fato de que mulheres com essas características são potencialmente mais propícias a um ataque do que mulheres que se portam de maneira menos insinuante.

    O que não é nenhuma mentira, pois o que provoca excitação em qualquer homem provoca também nos mal intencionados que vão às vias de fato... Aliás, a polícia de São Paulo já publicou um manual sobre como evitar um estupro baseado em pesquisa junto aos julgados. E dentre as dicas cita estilo de vestimenta, cabelo e outras características mais visadas pelos bandidos ao escolher suas vítimas. Cabe a prudência em diversos aspectos, não é! Abraços!

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    1. Olá Adriano,
      Obrigado pela visita e comentário. O duro é que foi o entrevistador, no caso o IPEA, que formulou a frase para o entrevistado. Esse último concordava ou não com ela. Então, no caso, foi isso mesmo que ele quis dizer porque a formulação da frase é clara. Em um caso ou em outro, o que eu penso é que não há nenhuma justificativa para a ação do ataque.

      O que também assusta na pesquisa é a constatação de que há muitas coisas veladas no Brasil. Assim como não se admite publicamente a existência de racismo, também não se admitia a propensão à violência contra a mulher.

      Um abraço,

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    2. Muito esclarecedor, Giovanni, e é bem verdade o que disse: há muitas coisas veladas no Brasil. E sobre a agressão à mulher, há uma frente de combate no mundo jurídico questionando o por quê da Lei Maria da Penha defender exclusivamente a agressão doméstica, não servindo de base para julgar todas as outras formas de agressão à mulher, inclusive o crime contra a honra, que finalmente caiu na mídia graças ao celular com câmera de alta definição e ao Whatsapp.

      É uma vergonha...

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