sábado, 9 de março de 2019

Citações bibliográficas como processo de construção de mercado

Em recente post no Facebook, o professor Luciano Rossoni fez a instigante observação de que está "vendo um movimento interessante nos artigos publicados: a redução no número de referências". Dando continuidade a sua obervação, Rossoni destaca que "há revisores que vêm questionando o número excessivo de referências, especialmente porque muitas delas são citadas cerimonialmente".

Essa é uma questão que realmente me parece relevante. Confesso que não sei qual é o melhor termo para tratá-la - se é que há um específico -, mas creio que deve ser amplamente debatida.

Os primeiros artigos que me chamaram a atenção por trazerem um grande número de citações foram os artigos publicados fora do Brasil. Comecei a ver muitas, mas muitas citações mesmo nos artigos que lia. Pensei se tratar de uma forma de os autores expressarem conhecimento e erudição sobre determinado tema e sinalizarem que fizeram uma boa revisão da literatura sobre determinado assunto. Isso só se ampliou ao longo dos anos.

Continuo lendo artigos publicados em periódicos internacionais repletos de citações. Não tenho um número preciso, mas arrisco dizer que algo próximo a 90% das citações que aparecem no corpo do texto dos artigos estão dentro de parênteses. Em meio as minhas aulas e em reuniões de orientação, convencionei chamar isso de citação tsunami. Passei a dizer aos meus alunos e orientandos que esse tipo de citação tenta mostrar para os editores dos periódicos e para os revisores dos artigos que o autor do texto "sabe" do que está falando e conhece o que foi publicado sobre o assunto.

A ressalva que me habituei a fazer para meus alunos e orientandos é que esse tipo de citação pode parecer positiva por um lado, mas pode trazer um problema por outro, que consiste em que o autor quase sempre perde a sua voz no texto. A uma certa altura, quando se está lendo o texto, não se sabe quem disse o quê; ou seja, até onde vai o pensamento do autor e até onde ele está fazendo paráfrases de outros textos, portanto de outros autores. 

Dentre os textos que costumo ler, essa situação me parece mais facilmente perceptível em textos de Administração. Via de regra, pouco se faz citação direta de autores - refiro-me aqui àquelas citações em que se faz transcrição literal de um trabalho e se usa aspas, etc. 

Avançando e procurando trazer o que acredito ser uma outra parte dessa questão para o debate, parece-me que o "movimento" para se fazer um grande número de citações vai além da possível condição de erudição e domínio sobre o campo. Penso que o grande número de citações pode ser associado a uma questão de mercado. 

Em algum momento no meio do caminho, editores de periódicos podem ter exercido o papel de agentes dos interesses das próprias editoras. Suponho que para as grandes editoras internacionais é importante, e necessário, ver que aqueles artigos publicados em seus periódicos são citados em um maior número possível de outros artigos. Isso confere legitimidade aos periódicos que essas editoras publicam, aumenta a influência dos periódicos e, sobretudo, o valor de mercado dos mesmos. Como esses periódicos são comercializados e têm suas assinaturas vendidas para instituições de ensino e pesquisa mundo afora, é possível compreender esse movimento como uma forma de fazer business. 

Essa expressão de business, que poderíamos entender, no limite, até como uma espécie de construção de mercado, pode ser exemplificada por meio da exigência que alguns periódicos fazem para que no processo de submissão os autores citem um determinado percentual de artigos do tipo X, Y ou Z. Como se não bastasse tudo isso, há ainda, em alguns casos, a exigência de que as citações feitas sejam relativas a publicações realizadas em anos recentes, admitindo-se a citação de artigos publicados em torno de um intervalo de até 5 anos. 

Claramente, isso é também uma forma de reiterar a ideia de mercado. Mais que isso, é uma forma de estabelecer bases não só para a realização, como também para legitimar o próprio processo de cálculo do Fator de Impacto de periódicos, posto que, salvo engano, as métricas principais de cálculo envolvem dois intervalos: um mínimo de 2 anos, e um máximo de 5 anos. E uma outra coisa: o Fator de Impacto é publicado pelo Journal of Citation Report, que pertence a Thomson Reuters, e isso é mercado.

Portanto, para concluir esse post e voltar a questão inicial do debate, penso que a redução no número de referências pode representar um movimento lento, gradual, de maior profundidade na apropriação de conteúdos acadêmico-científicos, mas que provavelmente ainda está longe de se tornar uma realidade. Em uma única frase: no que se refere à realização de citações talvez o nosso maior desafio permaneça sendo compreender as dinâmicas do campo científico e as relações que as mesmas guardam com ações de mercado e expressões de poder.

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