domingo, 29 de março de 2020

Lockdown e limites morais do mercado



Muito se discute se a decisão mais acertada é manter um regime de isolamento social ou permitir a livre circulação de pessoas nesses dias difíceis em que o mundo se encontra diante de uma pandemia causada pelo Coronavírus (Covid-19). Virologistas, epidemiologistas, especialistas no campo da medicina, enfim, defendem o isolamento horizontal (envolvendo quase toda a população), enquanto alguns atores do mercado defendem o isolamento vertical (envolvendo apenas pessoas que estão em grupos de risco - idosos e pessoas com doenças crônicas).

Não parece haver dúvida que a decisão mais consequente é a do isolamento horizontal. Não obstante, atores do mercado têm insistido no argumento de que tal isolamento causará a destruição da economia, o que terminará produzindo o caos, e mais tarde comprometerá em parte a própria vida das pessoas. A rigor, sugerir uma escolha entre a vida das pessoas e a economia é sugerir uma escolha falsa, como apontado por Siva Vaidhyanathan em recente artigo publicado no The Guardian.

Em uma ou outra direção da discussão sobre a necessidade e o tipo de lockdown a ser implementado, o pano de fundo é a ação dos atores de mercado. Mais precisamente, que tipo de racionalidade adotam e como se comportam. Entre tais atores, e desde sempre, não há espaço para outro tipo de racionalidade que não seja a racionalidade instrumental. Ocorre que em momentos críticos parecem ser ainda mais perceptíveis os limites morais relativos à racionalidade instrumental de atores do mercado. Em outras palavras, definitivamente, há situações que transcendem a racionalidade e a noção de eficiência do mercado.

A título de sugestão, dois livros podem ajudar a compreender parte dos dilemas enfrentados nos dias atuais: Beyond the Market: the social foundations of economic efficiency, escrito por Jens Beckert, e Why Some Things Should Not Be For Sale, escrito por Debra Satz. Vale a pena a leitura.

Referências Conexas

Beckert, J. (2002). Beyond the market: the social foundations of economic efficiency. Princeton: Princeton University Press.

Satz, D. (2010). Why some things should not be for sale. Oxford: Oxford University Press.

quinta-feira, 26 de março de 2020

A quem interessa a nova Exame?



A partir de hoje começa uma nova etapa na trajetória da Exame, revista que outrora foi o principal veículo da mídia de difusão no tratamento do universo temático de negócios, finanças, economia e administração. A revista, que tem mais de 50 anos de existência, mudou ao longo do tempo, mas talvez nunca tenha mudado tanto como agora. O que esperar da nova Exame?   

A criação da internet, o avanço das tecnologias digitais e a criação de dispositivos eletrônicos de interação, acesso a dados e informações, bem como produção de conteúdos, transformaram a maneira como as pessoas se relacionam e se comunicam. Naturalmente, transformaram também a maneira como a imprensa veio a se organizar e estruturar a produção e distribuição de conteúdos. 

Jornais e revistas impressas passaram a enfrentar vários desafios para manterem seus assinantes, suas vendas e, por conseguinte, seus anunciantes. Excetuando-se eventuais dificuldades administrativas anteriores, empresas editoriais e veículos da mídia de difusão foram vendidos ou fechados em função dessas circunstâncias. Publicada anteriormente pela Editora Abril, a Exame é parte integrante desse processo: ela foi adquirida pela holding que controla o banco de investimento BTG Pactual.

A Exame informa que continuará produzindo conteúdo sobre finanças, economia, administração, enfim, sobre o mundo dos negócios. Entretanto, também informa que produzirá conteúdos em novas frentes, batizadas pela revista como Exame Research, Exame Academy, e Exame Experience. Tais frentes envolvem a produção de relatórios e conteúdos de investimento, a produção e distribuição de cursos, e a organização de eventos.     

Atores de mercado se organizam e se reorganizam em torno daquilo que se caracteriza como uma nova oportunidade, mas também do que atende aos seus interesses. Nitidamente, a proposta da nova Exame transcende aquele que é o modelo de negócio usual de um veículo da mídia de difusão. É possível que isso esteja relacionado aos propósitos de atores do mercado financeiro que desejam não apenas participar do debate nacional, mas moldar o próprio debate aos seus interesses.

Referências Conexas

Adorno, T. W. (2008). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra

Davis, G. F. (2009). Managed by the markets: how finance reshaped America. Oxford: Oxford University Press.

Medeiros, J., Vieira, F. G. D., & Nogami, V. K. C. (2014). A construção do mercado editorial eletrônico no Brasil por meio de práticas de marketing. Revista de Administração Mackenzie, 15(1), 152-173.

Reinert, M. (2016). Sociologia dos mercados: ampliando as possibilidades de análise para a administração e o marketing. Revista Interdisciplinar de Marketing, 6(1), 40-43.

Zwick, D., & Cayla, J. (2011). Inside marketing: practices, ideologies, devices. Oxford: Oxford University Press.